Advaita Vedānta, uma visão geral - D. Krishna Ayyar

Todos nós colocamos questões em relações a nós mesmo, ao mundo que experienciamos e ao Senhor, tais como – Quem sou eu? Sou este corpo? Sou esta mente? O que nos acontece quando morremos? Qual é a natureza do mundo que experienciamos? Como surgiu? Terá um fim? Existe um criador? Existe alguém como um Senhor Supremo? Existe mais do que um Deus? Qual a relação que temos com outros, o mundo perceptível e o Senhor ou Deuses? Qual é o propósito da vida?

Como outras filosofias, Advaita Vedānta aborda estas questões. É uma filosofia única. A sua singularidade consiste em:
a) a declaração que a realidade última é um princípio supremo de existência com consciência com infinitude, chamado Brahma (escrito como Brahman neste texto) que é idêntico à consciência dos seres vivos individuais chamado ātmā;
b) à relegação do universo perceptível (jagat) a uma ordem de realidade inferior.

A escritura original Hindu chamada Veda (que consiste em cerca de 20.000 mantras – hinos) é dividida em quatro compilações, chamados (a) Ṛg Veda, (b) Yajur Veda, (c) Sāma Veda e (d) Atharva Veda. Respetivamente, as partes mais antigas consistem em hinos (mantras) numa forma métrica ou poética, (b) um manual de rituais incluindo hinos em forma de prosa, (c) hinos em forma musical e (d) diversos assuntos. Juntos, estas partes são chamadas de Karma Kāṇḍa. As partes mais recentes dos Vedas, chamadas Vedānta, Upaniṣad ou Jñāna Kāṇḍa são a parte filosófica.

Karma Kāṇḍa lida com:
a) rituais e sacrifícios;
b) reverência a deidades e orações;
c) deveres, valores e a conduta da vida em harmonia com o bem-estar de todos os seres vivos, com os requisitos da sociedade e com a estrutura do universo (chamado karma);
d) meditação (upāsana) em aspetos do cosmos na forma de deidades (devatās) e no Senhor Supremo, o criador e controlador (Īśvara).

Existe muita literatura codificada e clarificatória chamada sūtras (aforismos), e elaborando esta, existem smṛtis. Enquanto que Brahma Sūtra lida com Upaniṣads, as outras lidam com Karma Kāṇḍa. Relacionada à secção Karma Kāṇḍa existem Dharma Śāstra Sūtras que lidam com os deveres, responsabilidades e valores a serem cultivados pelos indivíduos, Gṛhya Sūtras que lidam com assuntos familiares, Śrauta Sūtras que focam no bem-estar da sociedade, harmonia universal e paz. Existe também literatura que consistem em comentários chamados bhāṣyams e estes, por sua vez, têm uma corrente de sub-comentários. Estes que estão em forma de verso são chamados de vārtikas. Existem também trabalhos interpretativos sobre vários tópicos chamados Prakaraṇa. Todos estes juntos são chamados de Śāstra.

A busca por Karma Kāṇḍa é a preparação para Jñāna Kāṇḍa. Karma Kāṇḍa prescreve vários tipos de karma e upāsana e menciona os benefícios mundanos correspondentes a serem obtidos, como riqueza, saúde, descendência, aquisição de poderes sobrehumanos (chamados siddhis), vida em planos superiores, etc. Quando são realizados com o propósito de obtenção de benefícios materiais são chamados de kāmya karmas. Nas fases iniciais uma pessoa realiza kāmya karmas. Mas, a seu tempo – podem ser após muitos nascimentos (chamados janmas) – uma pessoa descobre que quaisquer benefícios que kāmya karma traga são temporários. Até a vida num plano superior é, de acordo como Śāstra, temporária. A forma tola de buscar a felicidade é desenvolvendo desejo por objetos. Nenhum prazer está separado de dor. Na realidade, na maior parte do tempo, é dor. A luta e tensão em adquirir coisas, a preocupação em proteger aquilo que uma pessoa adquiriu e a mágoa quando é perdido ou deixa de existir – tudo isto não é mais do que dor. A felicidade existe apenas em escassos momentos quando alguém tem algo que deseja e o desejo por outra coisa ainda não surgiu. O desejo não tem fim. Um desejo surge após o outro. Uma pessoa anda sempre ansiosa por algo melhor. A saciedade desaparece. A lei dos retornos enfraquecidos opera. Se ir ao cinema uma vez por mês é suficiente, de início, você chega a uma altura em que quer ir diariamente e, mesmo isso, não é suficiente depois. Os seus sentidos passam por desgaste pelo prazer e uma pessoa torna-se mentalmente escrava dos objetos e fisicamente uma ruína. O meio mais sábio de ser feliz é desenvolver desapego pelos objetos (vairāgya). Vide Īśāvāsya 1 - “Proteja-se abdicando do desejo.” Vivenciando os problemas de buscar felicidade através do contacto com objetos, uma pessoa começa a pensar se é possível ter paz e felicidade permanente, Śāstra vem e diz, “Sim; é possível. Deixe os kāmya karmas e venha ao Jñāna Kāṇḍa.”

Antes de vir a Jñāna Kāṇḍa, uma pessoa tem de se preparar. O assunto é sutil e o estudo requere tranquilidade e concentração da mente. Tranquilidade ou pureza da mente e concentração são adquiridas, respectivamente, pela realização de karma e upāsana sem desejo peles benefícios mundanos e somente com a perspetiva de ir a Jñāna Kāṇḍa. Isto é chamado de niskāma karma. Isto é um modo de vida onde a atitude é significativa. Qualquer que seja a ação que se faça, religiosa ou secular, é feita como uma oferenda a Īśvara (Īśvara arpaṇa buddhi) e a aceitação dos resultados, favoráveis ou desfavoráveis com equanimidade como um presente sagrado de Īśvara (Īśvara prasāda buddhi). Isto é chamado de karma yoga. Karmayoga produz pureza da mente (citta śuddhi) e upāsana gera tranquilidade e concentração da mente (citta aikagryam e citta naiscalyam) e desejo por ātmā vicāra (questionamento sobre a natureza do ser), que são necessários à busca de Jñāna Kāṇḍa.

Śāstra prescreve aquilo que se chama varnāśrama varṇa – quatro modos de vida sucessivos e quatro vocações. Os quatro modos sucessivos começam com brahmacarya aśrama no qual rapazes e raparigas cantam os mantras dos Vedas e, estudando Sânscrito, ficam com uma ideia geral daquilo que o Veda diz. Também estudam assuntos auxiliares chamados vedāngas (śikṣā, kalpa, vyākarana, nirukta, chandas e jyotiṣa – pronúncia e entonação, metodologia dos rituais, gramática, explicação etimológica de palavras Védicas difíceis, métrica e astronomia). Começando aos cinco anos de idade, o estudo é para ser feito com um perceptor (guru), e ficando com ele durante um período de doze anos (isto é chamado de gurukulavāsa). Segue-se gṛhasthāśrama no qual, após o casamento, funções como sacerdote, professor, guerreiro, comerciante ou agricultor (num dos quatro varṇas chamados, respetivamente, brāhmana, kṣatriya, vaiśya e śūdra). As mulheres que não escolheram seguir Jñāna Kāṇḍa casam e cuidam do lar. Quando se tem filhos, e ao mais velho se podem delegar as responsabilidades familiares, uma pessoa pode adotar vānaprastha aśrama no qual se retira com o cônjuge para a floresta para realizar upāsana. Por último, sanyāsa aśrama durante o qual uma pessoa dedica o seu tempo exclusivamente a um estudo profundo de Vedānta (Jñāna Kāṇḍa). Isto é feito novamente sob a supervisão de um guru; desta vez, o guru tem de ser, não apenas versado em Vedānta , mas ele próprio estar fixo em Brahman (śrotriyam brahmaniṣṭham). Existem dois tipos de sanyāsa – vividiśā sanyāsa – para dedicar total atenção a śravaṇam, mananam e nidhidhyāsanam.

Não é obrigatório passar por gṛhasthāśrama e vānaprastha āśrama. Aqueles que obteram suficiente pureza da mente (citta śuddhi), desapego (vairāgyam), concentração (citta aikāgryam) e desenvolveram um forte desejo por libertação após brahmacaryāśrama podem, quer sejam rapazes ou raparigas, tomar imediatamente sanyāsāśrama, ou, sem passar por grahastāśrama, continuar a estudar Vedānta (são chamados de naiṣṭhika brahmācaris ou naiṣṭhika brahmacārinis) - vide Bṛhadāraṇyaka IV.iv.20, onde dois tipos de sanyāsa são mencionados, um após gṛhasthāśrama e vānaprastha e outro logo após brahmacarya; na Jābāla Upaniṣad também é dito que uma pessoa adota gṛhasthāśrama após brahmacarya, vānaprasthāśrama após gṛhasthāśrama, sanyasāśrama após vānaprastha e, em alternativa, pode ir diretamente para sanyasāśrama após brahmacarya. No meio económico e social de hoje, não é possível aderir ao antigo sistema de varnāśrama dharma envolvendo uma sucessão regular do modo de vida e uma clara divisão de vocações. Gurukulavāsa tornou-se obsoleto e não há tempo para o chefe de família realizar os rituais elaborados mencionados no Śāstra. No entanto, mesmo numa sociedade moderna, mesmo que não haja nenhuma cerimónia de passagem de āśramas, a sequência da atividade principal na vida não é diferente – primeiro uma pessoa estuda, depois executa os seus deveres da sua profissão, sem omitir oração e reverência e, se for inteligente, dedica tempo após a reforma para a busca espiritual. Mesmo nas circunstâncias modernas, apesar dos rituais formais não serem possíveis, é possível dedicar algum tempo a um regime limitado de reverência, oração e meditação, na medida em que a preocupação em ganhar a vida assim o permita. Uma pessoa também tem que realizar os seus deveres para com os outros, para com a sociedade e para com a natureza. Mais, uma pessoa deverá buscar uma profissão no espírito de seguir o caminho de karma yoga e viver uma vida baseada em valores, como veracidade, não-violência, disciplina, caridade, etc. Acima de tudo, uma pessoa reduz as buscas mundanas ao mínimo requerido para viver e dedica tempo à busca espiritual. Se for talentosa, o talento deve ser usado para o bem-estar da sociedade, nação e mundo, após providenciar as necessidades da sua família. A riqueza excedente deverá ser partilhada com instituição beneficentes.

A maior parte da literatura Védica original perdeu-se devido ao desuso e destruição durante as invasões. De acordo com a tradição, a literatura de Vedānta consistia originalmente em 1180 Upaniṣads. O que restam são cerca de 108. Destas, doze Upaniṣads são consideradas as mais importante. Destas, dez são as mais ensinadas, nomeadamente, Īśa, Kena, Kaṭha, Praśna, Muṇḍaka, Māndūkya, Aitreya, Taittiriya, Chāndogya e Bṛhadāraṇyaka sobre as quais o grandioso preceptor Śaṅkarācārya escreveu comentário inestimáveis. As duas outras são Kaivalya e Śvetāśvatara (dizem que o comentário existente à Śvetāśvatara é também da autoria de Śaṅkarācārya). Māndūkya é a Upaniṣad mais curta e Bṛhadāraṇyaka é a mais longa. Māndūkya é estudada junto com um tratado explicatório chamado “kārikā” escrito por Gauḍapādācārya, professor do professor (paramaguru) de Śaṅkarācārya. Para além das Upaniṣads, todos os estudantes de Vedānta estudam a Bhagavadgītā e os “Brahma sūtras” de Vyasācārya. Como são textos-base, são chamados de “Prasthānatraya”.

De acordo com a tradição, a literatura dos Vedas, incluindo Vedānta, não é de autoria humana. É revelada por Īśvara; vide Kaivalya Upaniṣad 22 - “Eu (Brahman) sou o único tema ensinado nos diferentes Vedas. Eu sou o revelador de Vedānta e apenas eu sou o real conhecedor dos Vedas.” Śvetāśvatara IV.9 - “Mayī (Brahman através do seu poder chamado Maya) cria o Veda ...” (esta palavra Mayī deve ser interpretada, preferencialmente, como Īśvara, já que, a criação é mencionada). Revelado por Īśvara, o Veda existe numa forma sutil, como parte da criação. Foi veiculado pelos sábios (ṛṣis), cujo equipamento mental especial adquirido através de upāsana os capacitou a captarem aquilo que existe em forma sutil (a palavra “ṛṣi” é derivada duma raíz que significa “ver”; assim, ṛṣi significa aquele que vê. O Veda foi transmitido a gerações sucessivas na tradição de professor a estudante. Isto é chamado de “guru śiṣya paramparā” Vide Śvetāśvatara Upaniṣad V.6 - “Brahmatvam (o princípio chamado Brahman) está escondido nas Upaniṣads que constituem a essência dos Vedas (“escondido” significa que só pode ser conhecido por aqueles que fazem śravaṇa e manana a fundo). Hiranyagarbha conhece-as (as Upaniṣads). Conhecendo-as, Devas e ṛṣis tornaram-se imortais”. Visto que o ensinamento era oral, não-escrito, o Veda é chamado de śruti. Já que não é de autoria humana é chamado de “apauruṣeya pramāna”. O resto do Śāstra é de autoria humana, o trabalho de sábios e santos é chamado de “pouruṣeya pramāna”.

No seu ensinamento fundamental, Vedānta lida com assuntos para além, da criação. O intelecto humano em si é parte da criação. Não pode portanto provar ou refutar o que é dito em Vedānta. Confira-se a Kathopaniṣad I.ii.8 e I.ii.9 – Brahman existe para além da argumentação.” “Esta sabedoria (…) não é para ser atingida através da argumentação.” Kenopaniṣad I.3, I.4 e I.6 - “Os olhos não vão lá, nem o discurso nem a mente. Não conhecemos Brahman sendo isto ou aquilo.” “Aquele (Brahman) é seguramente diferente do conhecido e, de novo, está acima do desconhecido.” “Aquilo que o homem não compreende com a mente.” Taittiriya Upaniṣad II.ix.1 - “Aquele (…) Brahman que as palavras não conseguem atingir, voltam de novo com a mente.” Fé – isto é, a convicção profunda que aquilo que as Upaniṣads nos ensinam é incontestável – é essencial. Assim, um estudante de Vedānta segue, principalmente, aquilo que é dito nas Upaniṣads da forma que foi interpretado pelos preceptores (ācāryas) que ele escolheu seguir. A lógica é usada para analisar tópicos baseados em dados recolhidos pelo Śāstra para chegar a uma construção harmoniosa de textos (chamada “samanvaya”) e estar convicto da credibilidade daquilo a que se chega (sambhāvana yukti).

Retirado de www.vedantaadvaita.org, traduzido do Inglês por Gustavo Cunha e republicado em www.yogavaidika.com com a permissão do autor (D. Krishna Ayyar). O autor concedeu permissão para uso pessoal. Para uso comercial, para republicar ou traduzir noutras línguas por favor contactar o autor, D. Krishna Ayyar: ayyarkrishna4@gmail.com. Imagem de topo propriedade de Himalayan Academy, usada sob licença Creative Commons.

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